quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Pai Contra Mãe, um conto De Machado de Assis

Axé Quilombolas Internáuticos!

Sim, Machado de Assis, o maior escritor do século xx, negro e "militava" pelas questões raciais em seus contos, que por sua vez são atualíssimos nos dias de hoje.
Por muito tempo acreditou-se que Machado de Assis era branco e muito artifícios foram usados para que se acreditasse em tal fato. Como sabemos, o RACISMO foi uma ideologia construída, o onde delimitou-se as raças superiores e as raças inferiores.
Como uma mente brilhante tal qual Machado de Assis, poderia ser negro? Daí a tentativa dos artifícios em falsiar fotografias clareando imagens em suas caricaturas ou em simples desenhos q o representasse, a tentativa de deixá-lo com os traços mais finos.
Mas o fato, é, que o próprio se reconhecia com tal e lutava em prol ás questões abolicionistas.
São inúmeras as obras que retratam tal questão, bem ao modo machadiano...
Porém, estas obras não vieram a conhecimento do grande público de intelectuais , tanto quanto Dom Casmurro e Memórias Póstumas de Brás Cubas.



Contudo, este nosso espaço virtual, apresentará um Conto dos Machados de Assis, que trata desta temática racial.

A priori, de forma implícita, mas a medida que o leitor se envolve no contexto da leitura é impossível não se perplexar com a trama.

O conto é o " Pai Contra Mãe" de Machado de Assis.



PAI CONTRA MÃE
A ESCRAVIDÃO levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a
outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo
ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a
máscara de folha-de-flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos
escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dous para ver, um para
respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de beber,
perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que
eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dous pecados extintos, e a
sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem social
e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os
funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não cuidemos
de máscaras.

O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai uma coleira
grossa, com a haste grossa também à direita ou à esquerda, até ao alto da
cabeça e fechada atrás com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos
castigo que sinal. Escravo que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava um
reincidente, e com pouco era pegado.
Há meio século, os escravos fugiam com freqüência. Eram muitos, e nem
todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e
nem todos gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas repreendida;
havia alguém de casa que servia de padrinho, e o mesmo dono não era mau;
além disso, o sentimento da propriedade moderava a ação, porque dinheiro
também dói. A fuga repetia-se, entretanto. Casos houve, ainda que raros, em que
o escravo de contrabando, apenas comprado no Valongo, deitava a correr, sem
conhecer as ruas da cidade. Dos que seguiam para casa, não raro, apenas
ladinos, pediam ao senhor que lhes marcasse aluguel, e iam ganhá-lo fora,
quitandando.
Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse.
Punha anúncios nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o nome, a roupa, o
defeito físico, se o tinha, o bairro por onde andava e a quantia de gratificação.
Quando não vinha a quantia, vinha promessa: "gratificar-se-á generosamente", -
ou "receberá uma boa gratificação". Muita vez o anúncio trazia em cima ou ao
lado uma vinheta, figura de preto, descalço, correndo, vara ao ombro, e na ponta
uma trouxa. Protestava-se com todo o rigor da lei contra quem o acoutasse.
Ora, pegar escravos fugidios era um ofício do tempo. Não seria nobre, mas por
ser instrumento da força com que se mantêm a lei e a propriedade, trazia esta
outra nobreza implícita das ações reivindicadoras. Ninguém se metia em tal ofício
por desfastio ou estudo; a pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão
para outros trabalhos, o acaso, e alguma vez o gosto de servir também, ainda que


por outra via, davam o impulso ao homem que se sentia bastante rijo para pôr
ordem à desordem.
Cândido Neves, - em família, Candinho, - é a pessoa a quem se liga a
história de uma fuga, cedeu à pobreza, quando adquiriu o ofício de pegar
escravos fugidos. Tinha um defeito grave esse homem, não agüentava emprego
nem ofício, carecia de estabilidade; é o que ele chamava caiporismo. Começou
por querer aprender tipografia, mas viu cedo que era preciso algum tempo para
compor bem, e ainda assim talvez não ganhasse o bastante; foi o que ele disse a
si mesmo. O comércio chamou-lhe a atenção, era carreira boa. Com algum
esforço entrou de caixeiro para um armarinho. A obrigação, porém, de atender e
servir a todos feria-o na corda do orgulho, e ao cabo de cinco ou seis semanas
estava na rua por sua vontade. Fiel de cartório, contínuo de uma repartição anexa
ao Ministério do Império, carteiro e outros empregos foram deixados pouco depois
de obtidos.
Quando veio a paixão da moça Clara, não tinha ele mais que dívidas, ainda
que poucas, porque morava com um primo, entalhador de ofício. Depois de várias
tentativas para obter emprego, resolveu adotar o ofício do primo, de que aliás já
tomara algumas lições. Não lhe custou apanhar outras, mas, querendo aprender
depressa, aprendeu mal. Não fazia obras finas nem complicadas, apenas garras
para sofás e relevos comuns para cadeiras. Queria ter em que trabalhar quando
casasse, e o casamento não se demorou muito.
Contava trinta anos. Clara vinte e dous. Ela era órfã, morava com uma tia,
Mônica, e cosia com ela. Não cosia tanto que não namorasse o seu pouco, mas
os namorados apenas queriam matar o tempo; não tinham outro empenho.
Passavam às tardes, olhavam muito para ela, ela para eles, até que a noite a
fazia recolher para a costura. O que ela notava é que nenhum deles lhe deixava
saudades nem lhe acendia desejos. Talvez nem soubesse o nome de muitos.
Queria casar, naturalmente. Era, como lhe dizia a tia, um pescar de caniço, a ver
se o peixe pegava, mas o peixe passava de longe; algum que parasse, era só
para andar à roda da isca, mirá-la, cheirá-la, deixá-la e ir a outras.
O amor traz sobrescritos. Quando a moça viu Cândido Neves, sentiu que
era este o possível marido, o marido verdadeiro e único. O encontro deu-se em
um baile; tal foi - para lembrar o primeiro ofício do namorado, - tal foi a página
inicial daquele livro, que tinha de sair mal composto e pior brochado. O casamento
fez-se onze meses depois, e foi a mais bela festa das relações dos noivos.
Amigas de Clara, menos por amizade que por inveja, tentaram arredá-la do passo
que ia dar. Não negavam a gentileza do noivo, nem o amor que lhe tinha, nem
ainda algumas virtudes; diziam que era dado em demasia a patuscadas.
- Pois ainda bem, replicava a noiva; ao menos, não caso com defunto.
- Não, defunto não; mas é que...
Não diziam o que era. Tia Mônica, depois do casamento, na casa pobre onde eles
se foram abrigar, falou-lhes uma vez nos filhos possíveis. Eles queriam um, um
só, embora viesse agravar a necessidade.


- Vocês, se tiverem um filho, morrem de fome, disse a tia à sobrinha.
- Nossa Senhora nos dará de comer, acudiu Clara.
Tia Mônica devia ter-lhes feito a advertência, ou ameaça, quando ele lhe foi
pedir a mão da moça; mas também ela era amiga de patuscadas, e o casamento
seria uma festa, como foi.
A alegria era comum aos três. O casal ria a propósito de tudo. Os mesmos
nomes eram objeto de trocados, Clara, Neves, Cândido; não davam que comer,
mas davam que rir, e o riso digeria-se sem esforço. Ela cosia agora mais, ele saía
a empreitadas de uma cousa e outra; não tinha emprego certo.
Nem por isso abriam mão do filho. O filho é que, não sabendo daquele
desejo específico, deixava-se estar escondido na eternidade. Um dia, porém, deu
sinal de si a criança; varão ou fêmea, era o fruto abençoado que viria trazer ao
casal a suspirada ventura. Tia Mônica ficou desorientada, Cândido e Clara riram
dos seus sustos.
- Deus nos há de ajudar, titia, insistia a futura mãe.
A notícia correu de vizinha a vizinha. Não houve mais que espreitar a
aurora do dia grande. A esposa trabalhava agora com mais vontade, e assim era
preciso, uma vez que, além das costuras pagas, tinha de ir fazendo com retalhos
o enxoval da criança. À força de pensar nela, vivia já com ela, media-lhe fraldas,
cosia-lhe camisas. A porção era escassa, os intervalos longos. Tia Mônica
ajudava, é certo, ainda que de má vontade.
- Vocês verão a triste vida, suspirava ela.
- Mas as outras crianças não nascem também? perguntou Clara.
- Nascem, e acham sempre alguma cousa certa que comer, ainda que
pouco...
- Certa como?
- Certa, um emprego, um ofício, uma ocupação, mas em que é que o pai
dessa infeliz criatura que aí vem gasta o tempo?
Cândido Neves, logo que soube daquela advertência, foi ter com a tia, não
áspero mas muito menos manso que de costume, e lhe perguntou se já algum dia
deixara de comer.
- A senhora ainda não jejuou senão pela semana santa, e isso mesmo
quando não quer jantar comigo. Nunca deixamos de ter o nosso bacalhau...
- Bem sei, mas somos três.
- Seremos quatro.
- Não é a mesma cousa.


- Que quer então que eu faça, além do que faço?
- Alguma cousa mais certa. Veja o marceneiro da esquina, o homem do
armarinho, o tipógrafo que casou sábado, todos têm um emprego certo... Não
fique zangado; não digo que você seja vadio, mas a ocupação que escolheu é
vaga. Você passa semanas sem vintém.
- Sim, mas lá vem uma noite que compensa tudo, até de sobra. Deus não me
abandona, e preto fugido sabe que comigo não brinca; quase nenhum resiste,
muitos entregam-se logo.
Tinha glória nisto, falava da esperança como de capital seguro. Daí a pouco ria, e
fazia rir à tia, que era naturalmente alegre, e previa uma patuscada no batizado.
Cândido Neves perdera já o ofício de entalhador, como abrira mão de outros
muitos, melhores ou piores. Pegar escravos fugidos trouxe-lhe um encanto novo.
Não obrigava a estar longas horas sentado. Só exigia força, olho vivo, paciência,
coragem e um pedaço de corda. Cândido Neves lia os anúncios, copiava-os,
metia-os no bolso e saía às pesquisas. Tinha boa memória. Fixados os sinais e os
costumes de um escravo fugido, gastava pouco tempo em achá-lo, segurá-lo,
amarrá-lo e levá-lo. A força era muita, a agilidade também. Mais de uma vez, a
uma esquina, conversando de cousas remotas, via passar um escravo como os
outros, e descobria logo que ia fugido, quem era, o nome, o dono, a casa deste e
a gratificação; interrompia a conversa e ia atrás do vicioso. Não o apanhava logo,
espreitava lugar azado, e de um salto tinha a gratificação nas mãos. Nem sempre
saía sem sangue, as unhas e os dentes do outro trabalhavam, mas geralmente
ele os vencia sem o menor arranhão.
Um dia os lucros entraram a escassear. Os escravos fugidos não vinham já, como
dantes, meter-se nas mãos de Cândido Neves. Havia mãos novas e hábeis.
Como o negócio crescesse, mais de um desempregado pegou em si e numa
corda, foi aos jornais, copiou anúncios e deitou-se à caçada. No próprio bairro
havia mais de um competidor. Quer dizer que as dívidas de Cândido Neves
começaram de subir, sem aqueles pagamentos prontos ou quase prontos dos
primeiros tempos. A vida fez-se difícil e dura. Comia-se fiado e mal; comia-se
tarde. O senhorio mandava pelo aluguéis.
Clara não tinha sequer tempo de remendar a roupa ao marido, tanta era a
necessidade de coser para fora. Tia Mônica ajudava a sobrinha, naturalmente.
Quando ele chegava à tarde, via-se-lhe pela cara que não trazia vintém. Jantava e
saía outra vez, à cata de algum fugido. Já lhe sucedia, ainda que raro, enganar-se
de pessoa, e pegar em escravo fiel que ia a serviço de seu senhor; tal era a
cegueira da necessidade. Certa vez capturou um preto livre; desfez-se em
desculpas, mas recebeu grande soma de murros que lhe deram os parentes do
homem.
- É o que lhe faltava! exclamou a tia Mônica, ao vê-lo entrar, e depois de ouvir
narrar o equívoco e suas conseqüências. Deixe-se disso, Candinho; procure outra
vida, outro emprego.


Cândido quisera efetivamente fazer outra cousa, não pela razão do conselho, mas
por simples gosto de trocar de ofício; seria um modo de mudar de pele ou de
pessoa. O pior é que não achava à mão negócio que aprendesse depressa.
A natureza ia andando, o feto crescia, até fazer-se pesado à mãe, antes de
nascer. Chegou o oitavo mês, mês de angústias e necessidades, menos ainda
que o nono, cuja narração dispenso também. Melhor é dizer somente os seus
efeitos. Não podiam ser mais amargos.
- Não, tia Mônica! bradou Candinho, recusando um conselho que me custa
escrever, quanto mais ao pai ouvi-lo. Isso nunca!
Foi na última semana do derradeiro mês que a tia Mônica deu ao casal o conselho
de levar a criança que nascesse à Roda dos enjeitados. Em verdade, não podia
haver palavra mais dura de tolerar a dous jovens pais que espreitavam a criança,
para beijá-la, guardá-la, vê-la rir, crescer, engordar, pular... Enjeitar quê? enjeitar
como? Candinho arregalou os olhos para a tia, e acabou dando um murro na
mesa de jantar. A mesa, que era velha e desconjuntada, esteve quase a se
desfazer inteiramente. Clara interveio.
- Titia não fala por mal, Candinho.
- Por mal? replicou tia Mônica. Por mal ou por bem, seja o que for, digo que é o
melhor que vocês podem fazer. Vocês devem tudo; a carne e o feijão vão
faltando. Se não aparecer algum dinheiro, como é que a família há de aumentar?
E depois, há tempo; mais tarde, quando o senhor tiver a vida mais segura, os
filhos que vierem serão recebidos com o mesmo cuidado que este ou maior. Este
será bem criado, sem lhe faltar nada. Pois então a Roda é alguma praia ou
monturo? Lá não se mata ninguém, ninguém morre à toa, enquanto que aqui é
certo morrer, se viver à míngua. Enfim...
Tia Mônica terminou a frase com um gesto de ombros, deu as costas e foi meterse
na alcova. Tinha já insinuado aquela solução, mas era a primeira vez que o
fazia com tal franqueza e calor, - crueldade, se preferes. Clara estendeu a mão ao
marido, como a amparar-lhe o ânimo; Cândido Neves fez uma careta, e chamou
maluca à tia, em voz baixa. A ternura dos dous foi interrompida por alguém que
batia à porta da rua.
- Quem é? perguntou o marido.
- Sou eu.
Era o dono da casa, credor de três meses de aluguel, que vinha em pessoa
ameaçar o inquilino. Este quis que ele entrasse.
- Não é preciso...
- Faça favor.
O credor entrou e recusou sentar-se; deitou os olhos à mobília para ver se daria
algo à penhora; achou que pouco. Vinha receber os aluguéis vencidos, não podia


esperar mais; se dentro de cinco dias não fosse pago, pô-lo-ia na rua. Não havia
trabalhado para regalo dos outros. Ao vê-lo, ninguém diria que era proprietário;
mas a palavra supria o que faltava ao gesto, e o pobre Cândido Neves preferiu
calar a retorquir. Fez uma inclinação de promessa e súplica ao mesmo tempo. O
dono da casa não cedeu mais.
- Cinco dias ou rua! repetiu, metendo a mão no ferrolho da porta e saindo.
Candinho saiu por outro lado. Nesses lances não chegava nunca ao desespero,
contava com algum empréstimo, não sabia como nem onde, mas contava.
Demais, recorreu aos anúncios. Achou vários, alguns já velhos, mas em vão os
buscava desde muito. Gastou algumas horas sem proveito, e tornou para casa.
Ao fim de quatro dias, não achou recursos; lançou mão de empenhos, foi a
pessoas amigas do proprietário, não alcançando mais que a ordem de mudança.
A situação era aguda. Não achavam casa, nem contavam com pessoa que lhes
emprestasse alguma; era ir para a rua. Não contavam com a tia. Tia Mônica teve
arte de alcançar aposento para os três em casa de uma senhora velha e rica, que
lhe prometeu emprestar os quartos baixos da casa, ao fundo da cocheira, para os
lados de um pátio. Teve ainda a arte maior de não dizer nada aos dous, para que
Cândido Neves, no desespero da crise começasse por enjeitar o filho e acabasse
alcançando algum meio seguro e regular de obter dinheiro; emendar a vida, em
suma. Ouvia as queixas de Clara, sem as repetir, é certo, mas sem as consolar.
No dia em que fossem obrigados a deixar a casa, fá-los-ia espantar com a notícia
do obséquio e iriam dormir melhor do que cuidassem.
Assim sucedeu. Postos fora da casa, passaram ao aposento de favor, e dous dias
depois nasceu a criança. A alegria do pai foi enorme, e a tristeza também. Tia
Mônica insistiu em dar a criança à Roda. "Se você não a quer levar, deixe isso
comigo; eu vou à Rua dos Barbonos." Cândido Neves pediu que não, que
esperasse, que ele mesmo a levaria. Notai que era um menino, e que ambos os
pais desejavam justamente este sexo. Mal lhe deram algum leite; mas, como
chovesse à noite, assentou o pai levá-lo à Roda na noite seguinte.
Naquela reviu todas as suas notas de escravos fugidos. As gratificações pela
maior parte eram promessas; algumas traziam a soma escrita e escassa. Uma,
porém, subia a cem mil-réis. Tratava-se de uma mulata; vinham indicações de
gesto e de vestido. Cândido Neves andara a pesquisá-la sem melhor fortuna, e
abrira mão do negócio; imaginou que algum amante da escrava a houvesse
recolhido. Agora, porém, a vista nova da quantia e a necessidade dela animaram
Cândido Neves a fazer um grande esforço derradeiro. Saiu de manhã a ver e
indagar pela Rua e Largo da Carioca, Rua do Parto e da Ajuda, onde ela parecia
andar, segundo o anúncio. Não a achou; apenas um farmacêutico da Rua da
Ajuda se lembrava de ter vendido uma onça de qualquer droga, três dias antes, à
pessoa que tinha os sinais indicados. Cândido Neves parecia falar como dono da
escrava, e agradeceu cortesmente a notícia. Não foi mais feliz com outros fugidos
de gratificação incerta ou barata.


Voltou para a triste casa que lhe haviam emprestado. Tia Mônica arranjara de si
mesma a dieta para a recente mãe, e tinha já o menino para ser levado à Roda. O
pai, não obstante o acordo feito, mal pôde esconder a dor do espetáculo. Não
quis comer o que tia Mônica lhe guardara; não tinha fome, disse, e era verdade.
Cogitou mil modos de ficar com o filho; nenhum prestava. Não podia esquecer o
próprio albergue em que vivia. Consultou a mulher, que se mostrou resignada. Tia
Mônica pintara-lhe a criação do menino; seria maior a miséria, podendo suceder
que o filho achasse a morte sem recurso. Cândido Neves foi obrigado a cumprir a
promessa; pediu à mulher que desse ao filho o resto do leite que ele beberia da
mãe. Assim se fez; o pequeno adormeceu, o pai pegou dele, e saiu na direção da
Rua dos Barbonos.
Que pensasse mais de uma vez em voltar para casa com ele, é certo; não menos
certo é que o agasalhava muito, que o beijava, que cobria o rosto para preservá-lo
do sereno. Ao entrar na Rua da Guarda Velha, Cândido Neves começou a
afrouxar o passo.
- Hei de entregá-lo o mais tarde que puder, murmurou ele.
Mas não sendo a rua infinita ou sequer longa, viria a acabá-la; foi então que lhe
ocorreu entrar por um dos becos que ligavam aquela à Rua da Ajuda. Chegou ao
fim do beco e, indo a dobrar à direita, na direção do Largo da Ajuda, viu do lado
oposto um vulto de mulher; era a mulata fugida. Não dou aqui a comoção de
Cândido Neves por não podê-lo fazer com a intensidade real. Um adjetivo basta;
digamos enorme. Descendo a mulher, desceu ele também; a poucos passos
estava a farmácia onde obtivera a informação, que referi acima. Entrou, achou o
farmacêutico, pediu-lhe a fineza de guardar a criança por um instante; viria buscála
sem falta.
- Mas...
Cândido Neves não lhe deu tempo de dizer nada; saiu rápido, atravessou a rua,
até ao ponto em que pudesse pegar a mulher sem dar alarma. No extremo da rua,
quando ela ia a descer a de S. José, Cândido Neves aproximou-se dela. Era a
mesma, era a mulata fujona.
- Arminda! bradou, conforme a nomeava o anúncio.
Arminda voltou-se sem cuidar malícia. Foi só quando ele, tendo tirado o pedaço
de corda da algibeira, pegou dos braços da escrava, que ela compreendeu e quis
fugir. Era já impossível. Cândido Neves, com as mãos robustas, atava-lhe os
pulsos e dizia que andasse. A escrava quis gritar, parece que chegou a soltar
alguma voz mais alta que de costume, mas entendeu logo que ninguém viria
libertá-la, ao contrário. Pediu então que a soltasse pelo amor de Deus.
- Estou grávida, meu senhor! exclamou. Se Vossa Senhoria tem algum filho, peçolhe
por amor dele que me solte; eu serei tua escrava, vou servi-lo pelo tempo que
quiser. Me solte, meu senhor moço!
- Siga! repetiu Cândido Neves.


- Me solte!
- Não quero demoras; siga!
Houve aqui luta, porque a escrava, gemendo, arrastava-se a si e ao filho. Quem
passava ou estava à porta de uma loja, compreendia o que era e naturalmente
não acudia. Arminda ia alegando que o senhor era muito mau, e provavelmente a
castigaria com açoutes, - cousa que, no estado em que ela estava, seria pior de
sentir. Com certeza, ele lhe mandaria dar açoutes.
- Você é que tem culpa. Quem lhe manda fazer filhos e fugir depois? perguntou
Cândido Neves.
Não estava em maré de riso, por causa do filho que lá ficara na farmácia, à
espera dele. Também é certo que não costumava dizer grandes cousas. Foi
arrastando a escrava pela Rua dos Ourives, em direção à da Alfândega, onde
residia o senhor. Na esquina desta a luta cresceu; a escrava pôs os pés à parede,
recuou com grande esforço, inutilmente. O que alcançou foi, apesar de ser a casa
próxima, gastar mais tempo em lá chegar do que devera. Chegou, enfim,
arrastada, desesperada, arquejando. Ainda ali ajoelhou-se, mas em vão. O senhor
estava em casa, acudiu ao chamado e ao rumor.
- Aqui está a fujona, disse Cândido Neves.
- É ela mesma.
- Meu senhor!
- Anda, entra...
Arminda caiu no corredor. Ali mesmo o senhor da escrava abriu a carteira e tirou
os cem mil-réis de gratificação. Cândido Neves guardou as duas notas de
cinqüenta mil-réis, enquanto o senhor novamente dizia à escrava que entrasse.
No chão, onde jazia, levada do medo e da dor, e após algum tempo de luta a
escrava abortou.
O fruto de algum tempo entrou sem vida neste mundo, entre os gemidos da mãe
e os gestos de desespero do dono. Cândido Neves viu todo esse espetáculo. Não
sabia que horas eram. Quaisquer que fossem, urgia correr à Rua da Ajuda, e foi o
que ele fez sem querer conhecer as conseqüências do desastre.
Quando lá chegou, viu o farmacêutico sozinho, sem o filho que lhe entregara.
Quis esganá-lo. Felizmente, o farmacêutico explicou tudo a tempo; o menino
estava lá dentro com a família, e ambos entraram. O pai recebeu o filho com a
mesma fúria com que pegara a escrava fujona de há pouco, fúria diversa,
naturalmente, fúria de amor. Agradeceu depressa e mal, e saiu às carreiras, não
para a Roda dos enjeitados, mas para a casa de empréstimo com o filho e os cem
mil-réis de gratificação. Tia Mônica, ouvida a explicação, perdoou a volta do
pequeno, uma vez que trazia os cem mil-réis. Disse, é verdade, algumas palavras
duras contra a escrava, por causa do aborto, além da fuga. Cândido Neves,
beijando o filho, entre lágrimas, verdadeiras, abençoava a fuga e não se lhe dava
do aborto.
- Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração.
(MACHADO DE ASSIS, Obra completa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar,
1997. Vol.II, p.659-667).

Luciana Matias

Um comentário:

Ricardo disse...

Oi, Luciana, ótima postagem especialmente as fotos.